Só a cultura do espetáculo poderia imaginar que Evo Morales, Cristina Kirchner e Lula resolvessem, em poucas horas, os gargalos do abastecimento de gás no Cone Sul. Eles decorrem de duas crenças: na suposta generosidade infinita da natureza e no caráter "positivo" de qualquer aumento de consumo
André Ghirardi
Sob o único foco de luz, no centro do palco escuro, o mágico aproxima-se da mesa. Da platéia vêem-se apenas a cabeça e os pés da linda jovem, salientes nas extremidades da caixa sobre a mesa. A platéia aterrorizada testemunha o mágico serrar ao meio a caixa e, presumivelmente, o jovem corpo. Após um momento de angústia geral, o mago profere enfim as palavras milagrosas: abre-se a caixa e a jovem salta inteira, saudável, até mais linda do que antes. Todos aplaudem delirantes, aliviados, gratos ao misterioso poder que permitiu resgatar a harmonia que parecia destruída.
Somente a lógica de criação de um espetáculo poderia explicar a expectativa de que o desequilíbrio da indústria regional de gás pudesse, de fato, ser resolvido na recente reunião dos presidentes de Argentina, Bolívia, e Brasil, em Buenos Aires. Da mesma forma que, na cena mágica, a jovem dentro da caixa teve separado o tronco das pernas, existe hoje uma dissociação entre oferta e demanda por gás natural na região. Especificamente há um descasamento entre o volume de gás diariamente disponível para exportação na Bolívia (cerca de 34 milhões de metros cúbicos), e o volume de gás boliviano demandado por Brasil e Argentina (cerca de 36 milhões de metros cúbicos por dia).
O problema não é novo, e tem sido exaustivamente analisado ao longo dos últimos dois anos. Os fatos são plenamente conhecidos: não há como aumentar de imediato a produção boliviana; o Brasil precisa de todo o volume a que tem direito por contrato firmado há dez anos; a Argentina consome cada vez mais do que consegue produzir, e precisa aumentar importações para garantir o suprimento básico à população. É uma questão aritmética, e a conta simplesmente não fecha. Apesar disso criou-se, na imprensa de véspera, a expectativa de que a reunião tripartite de 23 de fevereiro pudesse produzir uma solução mágica e que, tal como a jovem de circo, o mercado regional de gás ressurgisse intacto e sorridente sob o aplauso geral. Mas a realidade se impôs. Não houve mágica: Houdini não foi a Buenos Aires.
Podemos tirar proveito desta espécie de ressaca pela mágica que não houve. Mas para isso temos que fazer o dever de casa, e rever os comportamentos que nos levaram a esse impasse. Como disse o poeta florentino, perdonar non si può chi non si pente (não se pode perdoar quem não se emenda), e o problema do desequilíbrio na indústria de gás vai persistir se continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Refiro-me especificamente a dois equívocos, presentes em grau variado nos países da região, e que geram expectativas descabidas: um sobre produção, e outro sobre consumo. O primeiro é que os recursos naturais são um bem em si, algo como uma dádiva divina que temos no subsolo, e que de toda parte afluirão capitais para desenvolver esses recursos, cobiçosos dos grandes lucros que será possível obter. Não é assim. A indústria de gás natural é uma atividade que exige expor ao risco imensos volumes de recursos que, alternativamente, podem ser direcionados a outras atividades com remuneração mais segura. Portanto, a extração e uso do gás dependem de que se dêem condições para remuneração justa do capital empregado nessa atividade. Do contrário, o gás permanecerá debaixo da terra, onde poderá ter função simbólica, mas não contribuirá para a qualidade da vida material.
Na história da indústria, a repartição do valor gerado pelo gás favoreceu comumente as empresas, e não os Estados nacionais. É legítimo, portanto, negociar novas partilhas
É claro que existe, sim, uma disputa pela repartição do valor criado na produção e uso do gás. É também certo que, na história da indústria, essa repartição favoreceu mais vezes às empresas do que aos Estados nacionais detentores das reservas. É legítimo, portanto, que exista negociação pelo valor gerado. Mas pode haver paralisia, se os governos fizerem disso unicamente uma causa de revanchismo nacionalista. Essa questão é particularmente delicada na Bolívia de hoje, onde as disputas internas em torno da reestruturação do Estado criam incertezas desfavoráveis aos investimentos de grande porte necessários para aumentar a produção de gás.
Leia a matéria completa aqui http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2237
Sob o único foco de luz, no centro do palco escuro, o mágico aproxima-se da mesa. Da platéia vêem-se apenas a cabeça e os pés da linda jovem, salientes nas extremidades da caixa sobre a mesa. A platéia aterrorizada testemunha o mágico serrar ao meio a caixa e, presumivelmente, o jovem corpo. Após um momento de angústia geral, o mago profere enfim as palavras milagrosas: abre-se a caixa e a jovem salta inteira, saudável, até mais linda do que antes. Todos aplaudem delirantes, aliviados, gratos ao misterioso poder que permitiu resgatar a harmonia que parecia destruída.
Somente a lógica de criação de um espetáculo poderia explicar a expectativa de que o desequilíbrio da indústria regional de gás pudesse, de fato, ser resolvido na recente reunião dos presidentes de Argentina, Bolívia, e Brasil, em Buenos Aires. Da mesma forma que, na cena mágica, a jovem dentro da caixa teve separado o tronco das pernas, existe hoje uma dissociação entre oferta e demanda por gás natural na região. Especificamente há um descasamento entre o volume de gás diariamente disponível para exportação na Bolívia (cerca de 34 milhões de metros cúbicos), e o volume de gás boliviano demandado por Brasil e Argentina (cerca de 36 milhões de metros cúbicos por dia).
O problema não é novo, e tem sido exaustivamente analisado ao longo dos últimos dois anos. Os fatos são plenamente conhecidos: não há como aumentar de imediato a produção boliviana; o Brasil precisa de todo o volume a que tem direito por contrato firmado há dez anos; a Argentina consome cada vez mais do que consegue produzir, e precisa aumentar importações para garantir o suprimento básico à população. É uma questão aritmética, e a conta simplesmente não fecha. Apesar disso criou-se, na imprensa de véspera, a expectativa de que a reunião tripartite de 23 de fevereiro pudesse produzir uma solução mágica e que, tal como a jovem de circo, o mercado regional de gás ressurgisse intacto e sorridente sob o aplauso geral. Mas a realidade se impôs. Não houve mágica: Houdini não foi a Buenos Aires.
Podemos tirar proveito desta espécie de ressaca pela mágica que não houve. Mas para isso temos que fazer o dever de casa, e rever os comportamentos que nos levaram a esse impasse. Como disse o poeta florentino, perdonar non si può chi non si pente (não se pode perdoar quem não se emenda), e o problema do desequilíbrio na indústria de gás vai persistir se continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Refiro-me especificamente a dois equívocos, presentes em grau variado nos países da região, e que geram expectativas descabidas: um sobre produção, e outro sobre consumo. O primeiro é que os recursos naturais são um bem em si, algo como uma dádiva divina que temos no subsolo, e que de toda parte afluirão capitais para desenvolver esses recursos, cobiçosos dos grandes lucros que será possível obter. Não é assim. A indústria de gás natural é uma atividade que exige expor ao risco imensos volumes de recursos que, alternativamente, podem ser direcionados a outras atividades com remuneração mais segura. Portanto, a extração e uso do gás dependem de que se dêem condições para remuneração justa do capital empregado nessa atividade. Do contrário, o gás permanecerá debaixo da terra, onde poderá ter função simbólica, mas não contribuirá para a qualidade da vida material.
Na história da indústria, a repartição do valor gerado pelo gás favoreceu comumente as empresas, e não os Estados nacionais. É legítimo, portanto, negociar novas partilhas
É claro que existe, sim, uma disputa pela repartição do valor criado na produção e uso do gás. É também certo que, na história da indústria, essa repartição favoreceu mais vezes às empresas do que aos Estados nacionais detentores das reservas. É legítimo, portanto, que exista negociação pelo valor gerado. Mas pode haver paralisia, se os governos fizerem disso unicamente uma causa de revanchismo nacionalista. Essa questão é particularmente delicada na Bolívia de hoje, onde as disputas internas em torno da reestruturação do Estado criam incertezas desfavoráveis aos investimentos de grande porte necessários para aumentar a produção de gás.
Leia a matéria completa aqui http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2237
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