Uma reportagem surpreendente sobre a censura à internet revela: ela é ao mesmo tempo onipresente e vulnerável – e o consenso é mais empregado que a repressão, no controle da sociedade
(Por Sofia Dowbor)
Que diferença faz o bom jornalismo. Em “The connection has been reset” (“A conexão foi restabelecida”, também disponível em nosso clip), artigo publicado na edição de março da revista norte americana TheAtlantic, o repórter James Fallows, apresenta uma interessante explanação a respeito do funcionamento do sistema chinês de censura à internet. Construído a partir de dezenas de depoimentos e de informações técnicas detalhadas, o texto é esclarecedor e surpreendente. Além do desvendar o controle sobre a rede – algo muito comentado e pouco conhecido no Ocidente — contribui para compreender um pouco melhor as complexas relações entre Estado e sociedade na China.
Fallows aborda, primeiro, o sistema chamado pelo governo chinês de de Golden Shield Project, ou Projeto Escudo de Ouro. Todo o tráfego de informações para dentro e para fora do país é monitorado, graças a dois artifícios. Ao contrário do que ocorre no Ocidente, a arquitetura da internet na China foi concebida de modo a admitir apenas três grandes portas de entrada, por onde passam os cabos de fibra ótica que ligam o país ao resto do mundo. Cada bit que passa por estes canais é duplicado, graças a um sistema que inclui microscópicos espelhos físicos (fornecidos pela empresa norte-americana Cisco…). Os dados são dirigidos aos computadores do Escudo de Ouro, processados e analisados. Uma equipe de vigilância manobra um sofisticado mecanismo de controle. Ela pode bloquear, de quatro diferentes maneiras, o acesso a qualquer conteúdo que lhe pareça digno de censura.
O aspecto mais efetivo do Golen Shield reside, aponta Fallows, em sua de imprevisibilidade. A BBC, por exemplo, pode ser consultada, em geral, sem qualquer tipo de bloqueio. No entanto, basta a presença de uma matéria sobre as manifestações no Tibete ou algum outro conteúdo sensível aos olhos do governo para que o sistema de vigilância, sempre atualizado, bloqueie imediatamente o acesso ao portal. Um exemplo interessante da adaptabilidade do projeto é a flexibilização temporária que irá ocorrer nos mecanismos de controle, para receber o fluxo de turistas estrangeiros durante os Jogos Olímpicos.
Uma das formas de controle é o monitoramento das palavras buscadas pelos usuários em sites como Google e o Baidu – um similar chinês, censurado e rapidíssimo. A procura por termos considerados sensíveis pode ser punida por bloqueios temporários. A alternância na decisão do que será ou não censurado, incluindo palavras que pertencem e deixam de pertencer ao index do governo, e o aprimoramenteo constante das técnicas de controle desenham um ambiente quase panóptico. Sem saber ao certo quais os alvos do controle, os cidadãos se mantêm constantemente atentos e amedrontados.
Livres da vigilância do “Escudo de Ouro”, centenas de redes virtuais privadas
O curioso, mostra o artigo, é que o Escudo de Ouro pode ser driblado por dois mecanismos conhecidos e tolerados pelo Estado. O primeiro (lento, grátis e usado por estudantes e hackers), é a conexão com servidores proxy no exterior. Por meio deles, um internauta chinês habilidoso pode ultrapassar as três grandes portas e navegar livremente, como se o fizesse a partir da Alemanha, da Austrália ou do Brasil. O segundo, muito mais difundido, são as redes virtuais privadas (VPNs, em inglês), acessíveis por assinatura. Permitem codificar os dados, empacotá-los e passar sem controle pelo Escudo de Ouro. As conexões individuais custam 40 dólares ao ano (uma semana de trabalho, para um operário). Centenas de empresas financeiras, industriais e comerciais, chinesas e estrangeiras, utilizam o sistema. Precisam disso para fazer negócios, sem barreiras, com uma rede cada vez mais extensa de parceiros em todo o mundo. Milhões de funcionários têm acesso às VPNs. Do ponto de vista técnico, o Estado poderia bloquear facilmente ambos os meios de driblar a censura. As conseqüências econômicas e políticas seriam desastrosas.
Por que manter um sistema de controle sofisticado e custoso, se ele pode ser contornado? O segredo, explica Fallows, é que o Escudo de Ouro estabelece os limites políticos e psicológicos de um espaço chinês da internet. Dentro dele, o controle é rígido. Equipes de censores (fala-se em dezenas de milhares) podem determinar, por exemplo, ao responsável por um portal, que se proíbam artigos sobre um determinado tema em todos os sites ou blogs lá abrigados; que se apaguem os textos já publicados sobre o assunto; que se eliminem os comentários postados a respeito em fóruns e listas de discussão.
Em tese, é perfeitamente possível contornar também este obstáculo. Basta postar em sistemas sediados no exterior e torcer para que os textos sejam lidos pelos usuários que driblam o Escudo de Ouro. Na prática, conta a reportagem, quem age assim descamba para a irrelevância política. A grande massa da população (já são 210 milhões de internautas, um número só superado pelos Estados Unidos) está interessada em se informar por meio de sites e blogs chineses, não em desafiar as autoridades.
Ao menos no momento, portanto, o regime não despreza a repressão, mas usa, como principal instrumento de política, a criação de consensos. Ao tentar responder perguntas de leitores (numa interessante seção, criada com este fim, no site de The Atlantic), Fallows faz obseravações muito interessantes sobre o Estado chinês: “A maior parte dos norte-americanos imagina um governo todo-poderoso, com cidadãos permanentemente controlados e o regime interferindo em todos os aspectos da vida”, diz ele. De fato, prossegue, “o regime é ser rude, quando lida com quem é visto como ameaça política”. Mas “em geral, não se assemelha em nada à era de Stalin na União Soviética, ou à Coréia do Norte de hoje (…) As pessoas não caminham olhando para trás, com medo de estar sendo seguidas”. O poder constrói sua legitimidade assegurando padrões de vida que melhoram, para a maior parte da população, e “não oprimindo a sociedade mais do que o necessário”…
(Por Sofia Dowbor)
Que diferença faz o bom jornalismo. Em “The connection has been reset” (“A conexão foi restabelecida”, também disponível em nosso clip), artigo publicado na edição de março da revista norte americana TheAtlantic, o repórter James Fallows, apresenta uma interessante explanação a respeito do funcionamento do sistema chinês de censura à internet. Construído a partir de dezenas de depoimentos e de informações técnicas detalhadas, o texto é esclarecedor e surpreendente. Além do desvendar o controle sobre a rede – algo muito comentado e pouco conhecido no Ocidente — contribui para compreender um pouco melhor as complexas relações entre Estado e sociedade na China.
Fallows aborda, primeiro, o sistema chamado pelo governo chinês de de Golden Shield Project, ou Projeto Escudo de Ouro. Todo o tráfego de informações para dentro e para fora do país é monitorado, graças a dois artifícios. Ao contrário do que ocorre no Ocidente, a arquitetura da internet na China foi concebida de modo a admitir apenas três grandes portas de entrada, por onde passam os cabos de fibra ótica que ligam o país ao resto do mundo. Cada bit que passa por estes canais é duplicado, graças a um sistema que inclui microscópicos espelhos físicos (fornecidos pela empresa norte-americana Cisco…). Os dados são dirigidos aos computadores do Escudo de Ouro, processados e analisados. Uma equipe de vigilância manobra um sofisticado mecanismo de controle. Ela pode bloquear, de quatro diferentes maneiras, o acesso a qualquer conteúdo que lhe pareça digno de censura.
O aspecto mais efetivo do Golen Shield reside, aponta Fallows, em sua de imprevisibilidade. A BBC, por exemplo, pode ser consultada, em geral, sem qualquer tipo de bloqueio. No entanto, basta a presença de uma matéria sobre as manifestações no Tibete ou algum outro conteúdo sensível aos olhos do governo para que o sistema de vigilância, sempre atualizado, bloqueie imediatamente o acesso ao portal. Um exemplo interessante da adaptabilidade do projeto é a flexibilização temporária que irá ocorrer nos mecanismos de controle, para receber o fluxo de turistas estrangeiros durante os Jogos Olímpicos.
Uma das formas de controle é o monitoramento das palavras buscadas pelos usuários em sites como Google e o Baidu – um similar chinês, censurado e rapidíssimo. A procura por termos considerados sensíveis pode ser punida por bloqueios temporários. A alternância na decisão do que será ou não censurado, incluindo palavras que pertencem e deixam de pertencer ao index do governo, e o aprimoramenteo constante das técnicas de controle desenham um ambiente quase panóptico. Sem saber ao certo quais os alvos do controle, os cidadãos se mantêm constantemente atentos e amedrontados.
Livres da vigilância do “Escudo de Ouro”, centenas de redes virtuais privadas
O curioso, mostra o artigo, é que o Escudo de Ouro pode ser driblado por dois mecanismos conhecidos e tolerados pelo Estado. O primeiro (lento, grátis e usado por estudantes e hackers), é a conexão com servidores proxy no exterior. Por meio deles, um internauta chinês habilidoso pode ultrapassar as três grandes portas e navegar livremente, como se o fizesse a partir da Alemanha, da Austrália ou do Brasil. O segundo, muito mais difundido, são as redes virtuais privadas (VPNs, em inglês), acessíveis por assinatura. Permitem codificar os dados, empacotá-los e passar sem controle pelo Escudo de Ouro. As conexões individuais custam 40 dólares ao ano (uma semana de trabalho, para um operário). Centenas de empresas financeiras, industriais e comerciais, chinesas e estrangeiras, utilizam o sistema. Precisam disso para fazer negócios, sem barreiras, com uma rede cada vez mais extensa de parceiros em todo o mundo. Milhões de funcionários têm acesso às VPNs. Do ponto de vista técnico, o Estado poderia bloquear facilmente ambos os meios de driblar a censura. As conseqüências econômicas e políticas seriam desastrosas.
Por que manter um sistema de controle sofisticado e custoso, se ele pode ser contornado? O segredo, explica Fallows, é que o Escudo de Ouro estabelece os limites políticos e psicológicos de um espaço chinês da internet. Dentro dele, o controle é rígido. Equipes de censores (fala-se em dezenas de milhares) podem determinar, por exemplo, ao responsável por um portal, que se proíbam artigos sobre um determinado tema em todos os sites ou blogs lá abrigados; que se apaguem os textos já publicados sobre o assunto; que se eliminem os comentários postados a respeito em fóruns e listas de discussão.
Em tese, é perfeitamente possível contornar também este obstáculo. Basta postar em sistemas sediados no exterior e torcer para que os textos sejam lidos pelos usuários que driblam o Escudo de Ouro. Na prática, conta a reportagem, quem age assim descamba para a irrelevância política. A grande massa da população (já são 210 milhões de internautas, um número só superado pelos Estados Unidos) está interessada em se informar por meio de sites e blogs chineses, não em desafiar as autoridades.
Ao menos no momento, portanto, o regime não despreza a repressão, mas usa, como principal instrumento de política, a criação de consensos. Ao tentar responder perguntas de leitores (numa interessante seção, criada com este fim, no site de The Atlantic), Fallows faz obseravações muito interessantes sobre o Estado chinês: “A maior parte dos norte-americanos imagina um governo todo-poderoso, com cidadãos permanentemente controlados e o regime interferindo em todos os aspectos da vida”, diz ele. De fato, prossegue, “o regime é ser rude, quando lida com quem é visto como ameaça política”. Mas “em geral, não se assemelha em nada à era de Stalin na União Soviética, ou à Coréia do Norte de hoje (…) As pessoas não caminham olhando para trás, com medo de estar sendo seguidas”. O poder constrói sua legitimidade assegurando padrões de vida que melhoram, para a maior parte da população, e “não oprimindo a sociedade mais do que o necessário”…
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