17/07/2007

Welcome to Brazil


por Guilherme Scalzilli

Na noite de 13 de julho, durante a cerimônia de abertura dos Jogos Panamericanos, Lula sofreu um acachapante dissabor público. Os milhares de apupos que ecoaram no Maracanã lotado destruíram a fantasia de infalibilidade que as pesquisas de opinião trouxeram ao presidente. Graças à blindagem ilusória, ele estava indesculpavelmente despreparado para expor-se em situação de tamanha periculosidade, num evento imprevisível, organizado por raposas notórias, em cidade governada por um sagaz adversário político, diante de audiência historicamente indisciplinada e hostil. Ademais, o petista recuou diante de um embaraço que em outros tempos contornaria com a reconhecida habilidade oratória. Seu estupor, típico da soberba ferida, deixou o constrangimento irreversível e deu às vaias aparência de improviso.
Parece repetitivo insistir nas pesquisas de opinião para jogar suspeitas sobre a sinceridade e a espontaneidade da manifestação, mas os números são incisivos demais. A aprovação pessoal de Lula atingiu espantosos 66% em julho (CNI/Ibope), enquanto o governador Sérgio Cabral obteve 48% entre os cariocas (Datafolha). No entanto, apenas o prefeito César Maia (32% de aprovação na capital) foi aplaudido na cerimônia. O choque entre as estatísticas e a estranha seletividade da platéia reforça-se quando consideramos o ambiente apolítico e ufanista, quase homogeneamente festivo, que domina cerimônias afins. A preparação do evento continua mergulhada em mistérios desnecessários. Por que sabemos tão pouco sobre a atuação de funcionários municipais na organização da festa? É verdade que o recrutamento dos voluntários privilegiou as bases eleitorais do casal Garotinho e do prefeito Maia? Houve realmente as tais reuniões fechadas para instrução de servidores e militantes partidários? Como ocorreu o treinamento dos voluntários, que, durante o ensaio geral, no estádio quase vazio, já demonstravam predisposição para vaias e aplausos idênticos aos ouvidos na abertura?
Previsivelmente, a mídia oposicionista ignora esses questionamentos, guardando a energia investigativa para outras conveniências. Tanto faz. O verdadeiro significado das vaias ilustrará a posteridade, acima de picuinhas ideológicas, através de sua camada mais visível, crua e indisfarçável: o vexame generalizado.
Apanhado isoladamente, vaiar Lula e Cabral constitui um gesto legítimo de catarse coletiva. Entretanto, no contexto da cerimônia de abertura, embotou uma festa milionária e arruinou um protocolo consagrado em solenidades internacionais. Essas demonstrações de anarquia tropical podem até parecer divertidas e serelepes no calor do momento, mas a observadores rigorosos revelam apenas falta de educação. É o tipo de comportamento selvagem que compõe o anedotário universal da Banânia, a republiqueta imaginária que desconhece princípios morais e regras de conduta.
Dias antes da vergonha, um estadunidense imbecil foi atacado por insultar os brios tupiniquins. "Welcome to Congo", escrevera ele aos conterrâneos. Pois nada semelhante ao ocorrido na noite de sexta-feira acontece nos EUA, tampouco em nações menos venturosas, apesar dos eventuais problemas que as acometam. Mesmo quando alheios ao patriotismo tolo, seus cidadãos valorizam a própria imagem perante o mundo. Sabem que prestigiar empreendimentos de grande visibilidade é também uma forma de valorizarem a si mesmos. E entendem que, na lógica do cerimonial terráqueo, aquele bípede bem vestido sublima o indivíduo para simbolizar uma instituição da República.
Imaturo e caricato, o público do Maracanã mostrou-se despreparado para abrigar um evento de porte continental. Não foi "irreverente", como quiseram alguns; foi patético. Misturou atuação política e macaquice jeca, militância e torcida de futebol. Purgou-se dos dissabores ideológicos com uma afronta omissa, que poucos ousam repetir à luz do dia. Trocou o tédio do ritual civilizado, rara chance de fingir alguma dignidade, pelo carnaval grotesco da autofagia desdenhosa.
Conhecemos há tempos o perfil dessa multidão ignorante, dotada de posses, que se despiu da empáfia para uivar no escuro. Estão ali justamente os maiores críticos do país, cujo atraso amaldiçoam com a superioridade dos cosmopolitas. Não por acaso, são os mesmos pugilistas do falso moralismo, que defendem soluções antidemocráticas para sanear os males da corrupção alheia, desde que as próprias benesses permaneçam garantidas. È o "ishpérrto" do jeitinho carioca, burguês folgado e malicioso, dado a contravenções. São as profissionais liberais reacionárias, histéricas e debochadas, que finalizam discussões comendo dedos de esquerdistas. E também as madamas grosseironas, com seus maridos brucutus, distribuindo cotoveladas, insultos e propinas para garantir melhores lugares em filas, assentos e mesas. E ainda as jovens raquíticas, amedrontadas pelo povaréu fedido, agarradas aos namorados almofadinhas, confessando saudades de Bariloche, Aruba ou Miami. E os sábios da imprensa-de-crachá, os convidados de autoridades insignificantes, os apadrinhados da burocracia enferma, todos escancarados em sua vulgaridade, soltando gargalhadas mefistofélicas ante o que julgavam ser um "momento histórico", o "risco no teflon", a suprema humilhação do lulo-petismo. Pobres diabos. Vaiaram-se ao espelho.


Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do romance "Crisálida" (editora Casa Amarela).


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